A recente e apressada afirmação das autoridades de saúde pública
de que o vírus zika é causa de um suposto e controverso surto de microcefalia
em bebês durante sua gestação em mães supostamente infectadas suscita algumas
observações pertinentes.
A falta de um diagnóstico preciso, isto é, identificador da
presença de vírus ativos no organismo, prejudica a definição de casos. Para um
estudo epidemiológico deve-se selecionar os casos suspeitos e então diagnosticar
etiologicamente um a um para caracterizar os casos positivos, somente então é possível
estabelecer uma definição de caso. Até
agora (fevereiro de 2016), todos os casos no Brasil são apenas casos suspeitos.
Apesar de ser agora uma prática corrente no país, não se pode
diferenciar dengue, chikungunya e zika por meio de sinais e sintomas clínicos. Não
é possível diferenciar com razoável grau de certeza dengue, chikungunya, zika, e
mesmo formas brandas de febre amarela com base no julgamento clínico. A demonstração
da presença do vírus ou de seu rastro é mandatória.
A presença de antígenos virais ou RNA viral no líquido amniótico
não é uma prova de etiologia. Por outro lado, a presença de antígenos virais ou
RNA viral inclusos em células nervosas é uma evidência. O ponto fraco desses
estudos é que só é referido para muitos poucos pacientes, o que não representa ainda uma amostra da população de casos.
O suposto aumento de casos de microcefalia foi associado à
febre zika com base numa suposição de associação entre
casos e história de infecção exantemática nas grávidas numa época em que se
anunciava a entrada do vírus zika em Pernambuco e em alguns estados do Nordeste (daí então espalhando-se para o país). Nenhum teste associativo foi realizado com base em
um diagnóstico etiológico (até então kits para tal propósito eram inexistentes
no país). A falta de cautela em declarar uma associação desse tipo coincide com
a necessidade de impactar a população com noticiário que causa pânico coletivo, que
assim ocultaria o atual escândalo político que mobiliza o Brasil. Esse fato
levou à uma dissonância cognitiva na população, criando um vírus zika social
dissociado do vírus zika biológico.
A falta de diagnóstico etiológico não nos permite estimar um
fator de risco, o que é importante mesmo antes de demonstrar uma etiologia. Desde
1952 sabe-se que camundongos e macacos são susceptíveis ao vírus, portanto não será
difícil ensaiar infecções em fêmeas grávidas de tais animais. Seria um passo importante
na investigação.
Só é possível afirmar que a associação entre o vírus zika e
os casos de microcefalia (assim como de lesões oculares e Guillain-Barré) é
real pela demonstração da etiologia. A epidemiologia nos ensina que existem duas
condições de causalidade:
1. Causalidade suficiente: sempre que o
agente está presente, a doença acontece.
2. Causalidade necessária: o agente está
presente, mas nem sempre a doença acontece (a doença nunca acontece sem a
presença do agente). Um exemplo bem conhecido é o da tuberculose: nem sempre a
presença da bactéria no organismo leva à doença.
As causalidades podem ser ainda direta e indireta. No primeiro
caso, o agente é diretamente e por si só responsável para a doença; no segundo
caso, o agente concorre com outras variáveis que o favorece na causalidade.
A demonstração da associação
significativa entre um suposto agente e a doença é o primeiro passo para se investigar uma
etiologia. Se o fator está presente sempre que uma doença ocorre numa população e nunca está presente quando a doença é inexistente, é uma pista
de causalidade e isto nos permite calcular um fator de risco para a doença. Entretanto, uma associação
significativa não é prova de causalidade, por isso devemos prosseguir com testes
de laboratório para demonstrar a etiologia, e o melhor e mais seguro protocolo
para isso são os postulados de Koch. Nem sempre, contudo, é possível demonstrar
a etiologia, então o fator de risco passa a ser um parâmetro importante a ser considerado
em todo protocolo de controle da doença.
Nem toda associação é uma pista segura. De fato, ela pode ser
um viés, a chamada causalidade espúria.
Isto é frequente quando julgamos um fator como causal quando ele ocorre antes
da doença aparecer. Essa relação temporal não é uma pista segura, senão uma
mera presunção de causalidade. Outro fator de erro é não perceber uma variável que
afeta tanto a doença como o fator supostamente causal, e assim levando à uma
falsa presunção de associação.
No caso de uma suposta relação causal entre o vírus zika e microcefalia,
é necessária uma prova de associação que ao menos forneça uma estimativa segura
de fator de risco. Isto já seria suficiente para afirmar responsavelmente uma associação.
A demonstração de etiologia será o passo seguinte, conforme já comentamos.
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