domingo, 23 de agosto de 2009

Super-infecciosos - Hubs epidêmicos nas redes sociais

Em uma epidemia, nem sempre a capacidade infectante é homogênea. Algumas pessoas têm a capacidade de transmitir a infecção com grande eficiência, ou seja, com um Ro maior que a média. No caso do HIV, os transmissores mais eficientes são aqueles que mantêm um maior número de relações sexuais numa população, formando os chamados “grupos de risco”. Outros casos estão ligados a características do hospedeiro ou hábitos, ou a virulência do patógeno (como na gripe atual, 2009). Estes transmissores são os que contribuem com a parcela significativa do espalhamento do patógeno numa população, mesmo quando o Ro médio é < 1. São chamados, por isso, de super-infectantes ou super-disseminadores.

Um exemplo bem estudado foi a transmissão da virose emergente que ficou conhecida como “pneumonia asiática” ou, oficialmente, SARS (sigla para “severe acute respiratory syndrome”, ou “síndrome agudo respiratório grave”), um coronavírus que surgiu no sul da China em 2002 e logo se espalhou rapidamente para outras regiões. A OMS considerou este rápido espalhamento como sendo devido a casos “superinfecciosos”, que infectam um número anormalmente grande de susceptíveis (no caso da SARS, há relato de um doente infectar até 40 pessoas). Tais casos deviam-se à uma carga viral muito alta ou a uma versão genética de um potente agente infeccioso.

O primeiro caso de SARS teria surgido em Foshan, China, em 16 de novembro de 2001. Um homem doente infectou quatro outros, mas não as quatro crianças que vivam com ele, o que torna esta doença ainda mais misteriosa. Em Janeiro do ano seguinte (2002), a doença foi levada para Guangzhou, também na China, por um vendedor de camarão, e a partir daí espalhou-se para três hospitais da cidade, um deles sendo o hospital em que o professor Liu Jianlun, um experiente pneumologista, tratou algumas das 90 vitimas. Em fevereiro, o professor Liu viajou de ônibus para um casamento em Hong Kong e hospedou-se no Metropole Hotel, em Kowloon. Ai ele ficou doente e não compareceu ao casamento.

Percebendo que podia ter contraído a SARS, ele se dirigiu ao hospital local e alertou o corpo médico sobre a epidemia de Guangdong, porém, como o governo chinês não havia declarado publicamente a epidemia, o professor Liu foi ignorado. Ele era um super-infectante, que transmitiu a SARS para sete hospedes (portanto, um Ro = 7) no 9o andar do hotel onde se hospedou (provavelmente por secreção deixada no botão do elevador), antes de se internar num hospital em Hong Kong, onde também infectou vários membros do corpo médico.

As sete pessoas infectadas no hotel foram as seguintes:
- Uma mulher de 26 anos, de Singapura, em férias em Hong Kong com uma amiga. Ao retornar ao lar, infectou 20 pessoas em cinco dias.
- Uma sino-americana de 78 anos, que levou a doença para Toronto, Canadá e a transmitiu para cinco membros de sua família antes de falecer. Este foi o único surto da doença for a do Oriente.
- Um homem de negócios sino-americano. Ele foi para Hanói, Vietnam, onde infectou 50 pessoas antes de morrer, muitas delas membros do corpo médico do hospital que o tratou (uma delas foi o médico Carlo Urbani, da OMS, que veio a falecer da doença).
- Um funcionário de aeroporto, de 26 anos, que foi internado no hospital Prince of Wales Hospital em Hong Kong, onde passou o vírus para dúzias de pessoas do corpo médico.

Após o espalhamento inicial da doença, vários outros super-infectantes ajudaram a disseminar a SARS. Houve duas pessoas infectadas em Singapura, uma delas a enfermeira que cuidou da mulher que esteve no Hotel em que se hospedou o professor Liu, em Hong Kong.

Em Hong Kong, pelo menos um super-infectante foi responsável pela epidemia em Amoy Gardens, onde mais de 100 pessoas foram infectadas em um único prédio. Outras pessoas que tiveram SARS eram muito pouco infectantes, por exemplo, a amiga que acompanhou a mulher que adoeceu em Hong Kong. Ela também teve a doença mas não infectou ninguém no hospital de Singapura.

Parece que somente uma minoria de doentes era superinfectante, e não é impossível que a doença perca sua força ao passar de pessoa a pessoa. Seja qual for a razão, a SARS acabou tornando-se controlada.

Ao todo foram contados 2.400 casos em todo mundo (China, Hong Kong, Canadá, Rússia) com 82 mortes, a maioria de profissionais da área médica que lidaram com doentes de SARS. Tal mortalidade é menor que a observada na pneumonia pneumocócica. Deste modo, houve mais pânico que perigo real.

A OMS atribuiu a SARS a um coronavírus com “99% de certeza”, porém, cientistas chineses atribuíram sua etiologia à uma clamídia, causa comum de pneumonia atípica.

O mais famoso superinfectante

Gaetan Dugas, um comissário de bordo franco canadense é conhecido como o paciente-zero da aids. Isto porque ele foi não somente o primeiro paciente diagnosticado como também porque das 248 pessoas diagnosticadas com aids em abril de 1982, 40 tinham tido relação sexual com ele ou com algum parceiro dele. Dugas foi o centro de uma complexa rede sexual emergente entre homossexuais masculinos. Esta rede estava ancorada entre as costas leste e oeste do EUA, abarcando São Francisco, Nova York, Flórida e Los Angeles. Ele tinha em média 250 parceiros diferentes por ano, numa vida promiscua em clubes gay e saunas, e em uma década contaminou cerca de 2.500 pessoas diferentes. Nunca ficou claro se ele introduziu a aids nos EUA, pois, visitava frequentemente a França, país onde os primeiros casos haviam sido detectados. De qualquer forma, a partir de Dugas, cerca de 20 mil mortes por aids puderam ser ligadas direta e indiretamente.

Dugas foi o centro de uma epidemia obscura que começou com poucos casos e em poucos anos havia se tornado uma crise nacional. Os modelos epidemiológicos clássicos falharam em detectar e controlar a epidemia que avançava, porque sua transmissão seguia um modelo de redes, com um elemento altamente conectado – um superinfectante – movimentando-se pela rede social na qual era uma espécie de hub.

Essa observação leva a um paradigma atual muito importante...

Copyright/2009
(Esse assunto é parte de um capítulo de livro a ser publcado em breve)

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