terça-feira, 23 de setembro de 2014

A febre ebola pode virar pandemia?



Há um frisson na mídia sobre a febre ebola vir a ser a praga que devastará o planeta, e até mesmo alguns cientistas, ingênuos em epidemiologia, aderem a essa tese bombástica.


Vamos examinar alguns fatos e extrair, com base em informações bem definidas, algumas conclusões.


Em trabalho recente, Christian Althaus (PLOS CurrentsOutbreaks, 25 August 2014, pre-print version) estimou entre 1,51 e 2,53 o R0 para o vírus Ebola segundo o país da África ocidental afetado. São valores baixos, tipicamente de infecções que progridem por contágio direto (contato com pacientes infectados, sangue e secreções, cadáveres) e que o indivíduo só passa a transmitir quando os sintomas da doença aparecem. Essas epidemias duram alguns meses e então desaparecem, a menos que tenham uma fonte externa que as sustentem. 


Além disso, a gravidade e a mortalidade da doença supera o avanço do contágio (isto é, mata mais rapidamente do que se espalha), por uma razão bastante simples: logo que fica doente, o paciente torna-se prostrado e então perde a mobilidade social, não transmitindo ativamente o vírus. O contágio só passa a acontecer quando o paciente, acamado, é assistido por pessoas sadias (familiares, cuidadores, religiosos, trabalhadores da saúde sem proteção técnica). Deste modo, a doença tende a se autolimitar quando as pessoas logo percebem a fonte de contágio. 


Esses fatos mostram claramente que a febre ebola pode ser facilmente controlada por barreiras de proteção de enfermagem e quarentenas. Também a decisão do presidente de Serra Leoa em decretar o confinamento recente de toda população da área de transmissão por três dias, que permitiu mapear os casos e remover os cadáveres, foi uma boa medida.


Isto é o suficiente para mostrar que o vírus ebola dificilmente se tornará pandêmico (a menos que haja algum interesse nisso). Por outro lado, isso também mostra que é uma péssima arma biológica, caso alguém estiver pensando em usa-lo para tais escusos fins. Basta raciocinar com bases em seus parâmetros epidêmicos.


Além disso, o cenário em que ora se desenrola a atual epidemia é um cenário de miséria, de populações desassistidas, confinadas a guetos, sem água corrente e esgoto que permitam àquelas populações sofridas ter o mínimo de proteção, o suficiente para minimizar o avanço do vírus e extinguir a epidemia com medidas de higiene doméstica. Eis porque a vírus não invadirá populações de muitos países fora daquela região, onde as politicas de saúde pública servem a contento. Mesmo admitindo um ataque massivo de vírus a países com bom desenvolvimento social, sua mortalidade seria bem menor (os cuidados assistenciais disponíveis para a população influi na mortalidade atual) e o epidemia seria rapidamente contida. Claro que a globalização da comunicação e das viagens aéreas e a superpopulação tornaram o risco de pandemias muito real, mas a febre ebola não parece ser um candidato viável para a próxima pandemia. 


E o que está acontecendo na África? Os filovírus estavam confinados a seus reservatórios naturais (morcegos, primatas, e alguns outros mamíferos), e o contato humano  com essas cadeias de manutenção era acidental, levando esporadicamente a epidemias por infecções secundárias tipicamente locais. Com o rápido crescimento de cidades naquela região, sem planejamento e infraestrutura, a transferência do vírus do reservatório silvestre para comunidades densas e o intenso tráfego entre estas favorecem tornou-se menos difícil. Se traçarmos os surtos e epidemias que vem acontecendo na África ocidental desde 1976, veremos um crescendo em frequência e número de vítimas, correlacionadndo-se ao crescimento de povoados e abertura de estradas nas selvas. O vírus tem agora oportunidade de evoluir, saltando para novos hospedeiros, aproximando mais das comunidades humanas espalhadas nas franjas silvestres. E o que tudo indica (ver meus posts anteriores), acredito que o vírus ebola que ora ataca sofreu uma mutação recente que levou à uma inflexão na sua taxa de morbidade, segundo sugere o comportamento que a epidemia passou a exibir desde o começo deste mês, e que agora projeta uma estimativa para 20 mil casos até o final do ano.

Nota: Max Carvalho, membro do nosso Setor de Epidemiologia, nos envia o trabalho de Gomes et al PLOS Currents Outbreacks, September 2, 2014, em que empregam o Global Epidemics and Mobility Model para gerar modelos estocásticos da presente epidemia, comprovando a tese já discutida aqui e por vários pesquisadores que estudam o assunto. A simulação de Gomes et al, contudo, vai mais além projetando estatísticas em tempo real.

Um comentário:

  1. Texto muito bom, que deveria ser enviado pra mídia sensacionalista!
    Como vc disse: "o vírus ebola dificilmente se tornará pandêmico (a menos que haja algum interesse nisso)"

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