Há um frisson na mídia sobre a febre ebola vir a ser a praga
que devastará o planeta, e até mesmo alguns cientistas, ingênuos em
epidemiologia, aderem a essa tese bombástica.
Vamos examinar alguns fatos e extrair, com base em
informações bem definidas, algumas conclusões.
Em trabalho recente, Christian Althaus (PLOS CurrentsOutbreaks, 25 August 2014, pre-print version) estimou entre 1,51 e 2,53 o R0
para o vírus Ebola segundo o país da África ocidental afetado. São valores
baixos, tipicamente de infecções que progridem por contágio direto (contato com
pacientes infectados, sangue e secreções, cadáveres) e que o indivíduo só passa
a transmitir quando os sintomas da doença aparecem. Essas epidemias duram
alguns meses e então desaparecem, a menos que tenham uma fonte externa que as
sustentem.
Além disso, a gravidade e a mortalidade da doença supera o
avanço do contágio (isto é, mata mais rapidamente do que se espalha), por uma
razão bastante simples: logo que fica doente, o paciente torna-se prostrado e então
perde a mobilidade social, não transmitindo ativamente o vírus. O contágio só
passa a acontecer quando o paciente, acamado, é assistido por pessoas sadias
(familiares, cuidadores, religiosos, trabalhadores da saúde sem proteção
técnica). Deste modo, a doença tende a se autolimitar quando as pessoas logo
percebem a fonte de contágio.
Esses fatos mostram claramente que a febre ebola pode ser
facilmente controlada por barreiras de proteção de enfermagem e quarentenas. Também
a decisão do presidente de Serra Leoa em decretar o confinamento recente de
toda população da área de transmissão por três dias, que permitiu mapear
os casos e remover os cadáveres, foi uma boa medida.
Isto é o suficiente para mostrar que o vírus ebola
dificilmente se tornará pandêmico (a menos que haja algum interesse
nisso). Por outro lado, isso também mostra que é uma péssima arma biológica, caso
alguém estiver pensando em usa-lo para tais escusos fins. Basta raciocinar com
bases em seus parâmetros epidêmicos.
Além disso, o cenário em que ora se desenrola a atual epidemia é
um cenário de miséria, de populações desassistidas, confinadas a guetos, sem
água corrente e esgoto que permitam àquelas populações sofridas ter o mínimo de
proteção, o suficiente para minimizar o avanço do vírus e extinguir a epidemia
com medidas de higiene doméstica. Eis porque a vírus não invadirá populações de
muitos países fora daquela região, onde as politicas de saúde pública servem a
contento. Mesmo admitindo um ataque massivo de vírus a países com bom
desenvolvimento social, sua mortalidade seria bem menor (os cuidados
assistenciais disponíveis para a população influi na mortalidade atual) e o epidemia
seria rapidamente contida. Claro que a globalização da comunicação e das
viagens aéreas e a superpopulação tornaram o risco de pandemias muito real, mas
a febre ebola não parece ser um candidato viável para a próxima pandemia.
E o que está acontecendo na África? Os filovírus estavam
confinados a seus reservatórios naturais (morcegos, primatas, e alguns outros
mamíferos), e o contato humano com essas cadeias de manutenção era acidental, levando esporadicamente a epidemias por infecções secundárias tipicamente
locais. Com o rápido crescimento de cidades naquela região, sem planejamento e
infraestrutura, a transferência do vírus do reservatório silvestre para
comunidades densas e o intenso tráfego entre estas favorecem tornou-se menos difícil. Se traçarmos os surtos e epidemias que vem
acontecendo na África ocidental desde 1976, veremos um crescendo em frequência e
número de vítimas, correlacionadndo-se ao crescimento de povoados e abertura de
estradas nas selvas. O vírus tem agora oportunidade de evoluir, saltando para
novos hospedeiros, aproximando mais das comunidades humanas espalhadas nas
franjas silvestres. E o que tudo indica (ver meus posts anteriores), acredito
que o vírus ebola que ora ataca sofreu uma mutação recente que levou à uma
inflexão na sua taxa de morbidade, segundo sugere o comportamento que a
epidemia passou a exibir desde o começo deste mês, e que agora projeta uma
estimativa para 20 mil casos até o final do ano.
Nota: Max Carvalho, membro do nosso Setor de Epidemiologia, nos envia o trabalho de Gomes et al PLOS Currents Outbreacks, September 2, 2014, em que empregam o Global Epidemics and Mobility Model para gerar modelos estocásticos da presente epidemia, comprovando a tese já discutida aqui e por vários pesquisadores que estudam o assunto. A simulação de Gomes et al, contudo, vai mais além projetando estatísticas em tempo real.
Nota: Max Carvalho, membro do nosso Setor de Epidemiologia, nos envia o trabalho de Gomes et al PLOS Currents Outbreacks, September 2, 2014, em que empregam o Global Epidemics and Mobility Model para gerar modelos estocásticos da presente epidemia, comprovando a tese já discutida aqui e por vários pesquisadores que estudam o assunto. A simulação de Gomes et al, contudo, vai mais além projetando estatísticas em tempo real.
Texto muito bom, que deveria ser enviado pra mídia sensacionalista!
ResponderExcluirComo vc disse: "o vírus ebola dificilmente se tornará pandêmico (a menos que haja algum interesse nisso)"