segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A saga do H5N1 continua

Tenho dito reiteradas vezes que o que impede a pandemia pelo vírus H5N1 é a sua alta mortalidade para humanos. Vírus com essa capacidade tem pouco poder de espalhamento, uma vez que não permite ao hospedeiro mobilidade suficiente para espalhar o contágio. Da mesma forma, se o patógeno é ineficiente em se transmitir de um hospedeiro a outro em cadeia, isto também dificulta o seu espalhamento epidêmico. Deste modo, o H5N1 deve modificar seu equipamento genético para se tornar uma eficiente linhagem pandêmica.

O que impressiona nesse vírus é a sua agressividade e altíssima mortalidade. Se algumas mutações atenuar este fator e aumentar a transmissibilidade teremos a maior catástrofe biológica da humanidade. Entretanto, tudo é especulação, pois, isto pode acontecer ou o vírus desaparecer unicamente por flutuações estocásticas, uma vez que não atingiu limiar suficiente para manter-se em transmissão sustentada mesmo que localmente. Por enquanto é um exercício de imaginação ou, se quiserem, mais uma “teoria da conspiração”.
Agora chega a noticia de que recentemente cientistas do Erasmus Medical Centre (Rotterdam, Holanda) conseguiram produzir uma cepa de H5N1 que se espalhou em mamíferos mantidos em laboratório, semelhante à uma gripe sazonal, disse o um dos pesquisadores, Ron Fouchier, em um recente simpósio em Malta. Eles conseguiram essa façanha produzindo cinco mutações em dois genes do vírus, provando que bastam poucas mutações para o temido H5N1 se torne pandêmico.

O H5N1 é um influenzavírus que só infecta aves, sendo o homem hospedeiro acidental adquirindo a infecção por exposição ocupacional. Desde que este vírus começou a se espalhar na Eurásia a partir de 2004, 565 pessoas foram infectadas e 331 morreram (aprox. 60%). Ao contrário do pensamento convencional, o experimento citado mostra que o H5N1 pode evoluir diretamente de aves para uma linhagem pandêmica em humanos, não sendo necessário cumprir um “estágio” em um mamífero (porcos, cavalos) antes desta etapa. Isto foi inferido do fato de os pesquisadores terem adaptado o vírus diretamente para furões.

Entretanto, um experimento controlado desta natureza e neste hospedeiro animal, tradicionalmente usado em pesquisa com gripe, não nos permite inferir com razoável certeza se este modelo é aplicável à ecologia humana.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Genes, evolução e formas pandêmicas de Influenza vírus

(se utilizar partes do texto, cite a fonte: Portela Câmara, F. Genes, evolução e formas pandêmicas de Influenza vírus, in www.popdinâmica.blogspot.com)

O vírus da influenza não é uma entidade, mas um consórcio de oito genes RNA cujas variantes se distribuem em complexos infecciosos transientes que circulam em aves selvagens. Essas aves que migram para os diversos pontos da terra em seu determinismo biológico reprodutivo formam uma genosfera onde estes complexos de oito genes se permutam constantemente e se mantém a despeito de mutações, selecionadas no modo sinônimo, de modo a preservar as sequências de aminoácidos apesar da variabilidade genômica.

Estes vírus infectam o intestino das aves e as diferentes variantes permutam seus genes promiscuamente, surgindo daí novas variantes que poderão ou não adaptar-se a mamíferos e daí saltar para o ser humano, ou infectar diretamente humanos. As aves formam um imenso pool destes genes virais e representam um laboratório natural de engenharia genética interagindo globalmente com o planeta.

Cada vírus da influenza A tem um gene que codifica 16 moléculas possíveis de hemaglutinina, HA, e outro gene que codifica 9 moléculas possíveis de neuraminidase, NA. Essas duas proteínas são responsáveis pelo reconhecimento e penetração na célula hospedeira, bem como pela resposta imune do hospedeiro. Elas podem e combinar de 16x9=144 modos possíveis, porem até agora só se detectou três combinações capazes de infectar humanos: H1N1, H2N2 e H3N2, provavelmente porque a adaptação a esse hospedeiro seja limitada. Por outro lado, todos os oito genes parecem serem necessários à infecção em um hospedeiro, sugerindo que todos eles devem ser co-adaptados para a infecção ser bem sucedida.

Quando um vírus influenza invade uma população, esta cria imunidade ao mesmo, produzindo anticorpos contra os antígenos HA e NA. Ao mesmo tempo, a pressão seletiva exercida pela imunidade de grupo seleciona mutantes do vírus que conseguem evadir-se do sistema imune da população e persistir nas gripes sazonais (antigenic drift), ou então trocam genes HA ou outros genes de variantes do mesmo subtipo que circulam conjuntamente. Ocasionalmente, um deste vírus pode trocar genes HA com outro semelhante de outra fonte, ocorrendo um grande salto genético (antigenic shift) que pode originar um vírus inteiramente novo que, se adaptado ao hospedeiro humano, poderá causar uma nova pandemia. Por convenção, uma pandemia de gripe se origina quando o gene NA do tipo circulante é inteiramente substituído. Foi por tal mecanismo que os vírus da gripe asiática de 1957, subtipo H2N2, e da gripe Hong Kong de 1968 se originaram do H1N1 de 1918. Outros eventos “tipo pandêmicos” Associados a permutação intra-subtipos ocorreram em 1947 (H1N1), 1951 (H1N1), 1997 (H3N2) e 2003 (H3N2).

O vírus que hoje (2009) causa uma pandemia mundial não é mais que um produto genético de um vírus classificado como H1N1 que persiste no ecossistema humano desde 1918, quando iniciou uma pandemia grave. Este vírus invadiu as populações humanas a partir de um reservatório aviário e se adaptou a transmissão humana causando grande mortalidade global no período pandêmico, quando então mudou para uma gripe sazonal com mortalidade baixa, como observado na gripe comum.

A partir dos humanos, este vírus adaptou ao porco, gerando a gripe suína clássica, enzoótica, H1N1. Dessa forma esse vírus persistiu com todos seus 8 genes até o presente em porcos e em humanos em epidemias sazonais, e há pelo menos 50 anos doam continuamente seus genes a novos vírus de aves e de vírus adaptados a porcos causando novas pandemias, epidemias e epizootias. O vírus que preocupa o mundo em 2009 é um descendente de quarta geração do vírus de 1918.


Mortalidade associada a influenza A pandêmica em eventos no período 1918-2009


Anos Vírus circulante Mortalidade (x100 mil/ano)
1918-1919 H1N1 (introdução do vírus) Pandêmico 598,0
1928-1929 H1N1 (drift) 96,7
1934-1936 H1N1 (drift) 52,0
1947-1948 H1N1 A’ (permutação intrasubtipo) 8,9
1951-1953 H1N1 (permutação intrasubtipo) 34,1
1957-1958 H2N2 (antigenic shift) Pandêmico 40,6
1968-1969 H3N2 (antigenic shift) Pandêmico 16,9
1972-1973 H3N2 A Port Chalmers (drift) 11,8
1975-1976 H3N2 (drift) e H1N1 (surto de gripe suína 12,4
1977-1978 H3N2 (drift) e H1N1 (retorno viral) 21,0
1997-1999 H3N2 A Sydney (permutação intrasubt.) e H1N1 (drift) 49,5
2003-2004 H3N2 A Fujian (permutação intrasubt.) e H1N1 (drift) 17,1
2009 H3N2 e H1N1 (drift) e H1N1 suíno (introdução viral) Pandêmico ?

Evolução da influenza A na antroposfera


Um vírus novo é introduzido a partir de genes virais que se permutam n pool de aves e daí surge uma combinação capaz de se adaptar ao homem. Isto foi o que aconteceu em 1918, emergindo uma tipo novo, H1N1. este vírus causou uma pandemia que varreu o planeta habitado em 3 ondas entre 1918 e 1919 causando grande mortalidade global. O vírus também adaptou-se a porcos, passando de humanos para estes animais, originando uma enzootia. Este e o H1N1 suíno clássico. Este vírus causou um surto em 1977 entre soldados do Forte Dix, acometendo 230 casos. Continua circulando até hoje (drift).

O vírus H1N1 humano continuou circulando e reassociou com um vírus do pool de aves originando o tipo H2N2 causador da pandemia de gripe asiática de 1957. Este vírus H1N1 desapareceu, mas voltou novamente em 1979 e continua até hoje causando gripes sazonais.

O tipo H2N2 reassociou com vírus do pool de aves e surgiu o tipo H3N2, causador da pandemia de gripe Hong Kong. O vírus H2N2 desapareceu totalmente e o H3N2 continua até hoje em gripes sazonais.

O tipo clássico H1N1 suíno reassociou-se com vírus o pool de aves, resultando no tipo H1N2 suino. Este reassociou-se com o tipo H3N2 sazonal, e o H1N1 suíno eurasiano que veio do pool de aves, e desta associação emergiu o atual H1N1 pandêmico.

Atualmente, portanto, circulam o H1N1 sazonal, o H1N1 pandêmico, o H1N1 suíno clássico, o H1N1 suíno eurasiano e o H3N2 sazonal.

Fases da pandemia por influenza

Fase 1 - Vírus da influenza circula em animais, especialmente aves, e sabe-se que pode ter um potencial pandêmico. Nesta fase, não se tem noticia de que haja casos humanos acidentalmente infectado por tais vírus.
Fase 2 – confirma-se a existência de casos humanos esporádicos infectados a partir de animais reservatórios.
Fase 3 – confirma-se a existência de uma linhagem nova (um novo antigenic shift) em casos humanos (clusters), mas não há evidencia de transmissão entre humanos, exceto em casos raros de estreito contato entre doentes e cuidadores.
Fase 4 – confirma-se a existência de transmissão sustentada entre pessoas do vírus em questão, causando surtos em comunidades locais. O risco de pandemia aqui é tido como iminente.
Fase 5 – pelo menos dois países confirmam transmissão sustentada do vírus.
Fase 6 – um outro pais acusa transmissão sustentada do vírus na comunidade, declara-se pandemia em curso.
Após o 1º pico da epidemia, os países devem se preparar para uma segunda onda, avaliando as ações tomadas no 1º pico e se preparando para enfrentar a próxima onda.
Após a pandemia, a atividade do vírus deve voltar a níveis normalmente vistos para as gripes sazonais.
*Current phase of alert in the WHO global influenza preparedness plan, in
http://www.who.int/csr/disease/avian_influenza/phase/en/index.html

quinta-feira, 24 de março de 2011

Entrada do dengue sorotipo 4 - 2011

(se utilizar partes do texto, cite a fonte: Portela Câmara, F. Entrada do dengue sorotipo 4 - 2011, in www.popdinâmica.blogspot.com)

Depois de um longo silêncio epidemiológico, o vírus da dengue tipo 4 (Den-4) entrou em seis estados do Brasil, entre eles o Rio de Janeiro, o pólo mais importante de disseminação. Anteriormente, em 1981-1982, este sorotipo apareceu no norte do país, juntamente com o sorotipo 1, em uma epidemia com mais de 10 mil casos. Agora, no verão de 2011, portanto 29 anos depois, o sorotipo 4 finalmente se estabelece. Completamos a hiperendemicidade da dengue, junto com o Sudeste Asiático.

Como a população presentemente não é imune a este sorotipo, a chance de uma grande epidemia no próximo verão é alta, com febre hemorrágica associada (talvez em cerca de 1% da população já imune para os outros sorotipos).

A extrema adaptabilidade e vigor reprodutivo do vetor Aedes, provavelmente um mutante selecionado no continente nos anos 70, encontra na ecologia das megacidades dos países em desenvolvimento, a equação ideal para esta doença. Essas megacidades atuam como pólos disseminadores.

Qual é essa ecologia? Tais cidades têm como característica crescimento urbano desordenado, acúmulo inapropriado de lixo e, como principal fator, a deficiência no fornecimento de água potável encanada para toda população. Como consequência, boa parte da populçação é obrigada a acumular água para uso doméstico em caixas e grandes vasilhames externos, proporcionando os criadores ideais para o mosquito vetor. É uma contingência deste modo de vida citadino, não há que se culpar o população por algo que é estrutural.

Também não adianta culpar o governo, pois a biologia do mosquito Aedes, sua ecologia urbana e genética de população, interagem para ganhar a luta contra os métodos até o momento disponíveis para se combater esta potência biológica. Os mosquitos podem ser comparados a terroristas altamente treinados organizados em rede de células prontas para entrar em atividade. Portanto, estamos em meio á uma guerra assimétrica cujo inimigo é altamente adaptativo e versátil.

Na presente situação, a única arma que pode deter o avanço destes agentes é uma vacina que, infelizmente, não existe ainda.

Por fim, embora a dengue seja uma doença causada por um vírus, ele só se transmite pela picada do mosquito, e toda a dinâmica de sua transmissão é dependente dos hábitos biológicos e reprodutivos desse artrópode. Deste modo, devemos ver a dengue como uma praga de mosquitos e atacá-la como tal.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

O Tumor Facial do Diabo da Tasmânia (CTVS): uma estranha forma de vida infecciosa

O diabo-da-tasmânia, um mamífero marsupial endêmico da Austrália (ilha da Tasmânia), é portador de uma forma de câncer, denominado de “tumor facial do diabo-da-Tasmânia”, descoberto em 1996, que se manifesta de uma forma muito agressiva e que talvez revele a verdadeira biologia dos tumores malignos. Com efeito, esses tumores espalham-se da face para todo organismo desse animal, ao mesmo tempo suas céliulas têm o poder de infectar indivíduos da mesma espécie, comportando-se tipicamente como agentes infecciosos. Este agente vem exterminando impiedosamente a população destes animais. Tumores semelhantes foram também descobertos em canídeos (cães, lobos, coiotes) desde 1876, conhecido como Sarcoma de Sticker ou CTVS (canine transmissible venereal sarcoma), ou ainda sarcoma infeccioso, que afeta os órgãos genitais e tem transmissão através do coito, mas não é tão agressivo e epidêmico quando o tumor facial do diabo-da-Tasmânia. Trata-se de um tumor histiocítico.

Ora, não é impossível que os tumores cancerosos tenham esta propriedade, mais evidente nos tumores citados que nos demais. Os tumores são uma classe heterogênea de aglomerados celulares de diferentes naturezas e taxas de crescimentos, comportando frequentemente alterações cromossômicas.

O CTVS é hoje tido como um organismo infeccioso de natureza celular, o que é facilmente demonstrado por inoculação experimental. O genoma destas células difere do genoma canino por apenas 200 a 2.500 anos. Em outras palavras, uma mutação tumoral canina levou suas células a e tornarem independentes e a se propagar por via infecciosa. Não há evidência de uma origem viral (ele é de origem clonal). Células tumorais, assim como microorganismos, são linhagens imortais que se propagam indefinidamente por reprodução assexuada.

Quando se analisa o DNA das células CTVS de diferentes regiões geográficas do planeta, verifica-se tratar-se de células originárias de um mesmo ancestral, independente da espécie de canídeo e da sua localização geográfica. Estas células são aneuplóides e compartilha os mesmos marcadores cromossômicos, o que serve para diagnosticar o tumor.

A disseminação do tumor facial no diabo-da-Tasmânia é tão ampla que está dizimando as populações deste animal, tendo já reduzido a 30% (média) o o número desses animais (originalmente 100 mil, hoje aproximadamente 30 mil). Em populações muito densas, o tumor chega a eliminar 100% dos indivíduos em um ano.

Os diabos-da-tasmânia são animais agressivos e brigam ferozmente na época do acasalamento, e como mordem o focinho dos adversários inoculam facilmente o tumor uns nos outros, gerando uma cadeia de transmissão por contato direto.

O motivo do espalhamento rápido deste tumor e sua alta mortalidade observada nestes animais deve-se ao fato de eles terem um sistema imunológico susceptível e uniforme na espécie, devido ao seu alto grau de homozigose. No passado, essa espécie foi quase exterminada e a região foi repovoada por animais geneticamente semelhantes ou idênticos (endogamia), de modo que o tecido estranho não é rejeitado pela população. Entre os cães, onde a heterozigose é alta, muitas variantes rejeitam o implante infeccioso do tumor, reduzindo drasticamente sua expansão e mortalidade pelo mesmo.

Este tipo de biologia nos faz agora repensar nos tumores malignos humanos e buscar evidências de transmissão familiar de certos tipos de neoplasias.

http://www.livescience.com/27804-contagious-devil-tumor-disease.html

http://www.nature.com/news/vaccine-hope-for-tasmanian-devil-tumour-disease-1.12576

As Epidemias de Crack e Violência

A grande vantagem de se estudar epidemiologia, e mais ainda a modelagem de propagação de doenças na população, é que ela aborda um processo universal: a propagação de informações.

Classifico as epidemias em tres categorias. Epidemias que se dão seja pela infecção por agentes que se replicam no hospedeiro e passa para outro estabelecendo cadeias de propagação, como os vírus biológicos e os vírus de computador; epidemias por agentes que não se replicam por si mas transformam elementos normais em semelhantes, que eu chamo de "propagação por conversão"; e epidemias por uma alteração de comportamente que pode ser propagável, como é o caso de um boato (fofocas, falsas notícias), uma moda (vírus de mercado), e aqui incluímos as drogas.

A disseminação de um agente epidêmico pode ser dar por causas naturais, intencionais ou acidentais.

No Brasil, além da dengue e de outros agravos preocupantes, temos também duas epidemias graves na terceira categoria da classificação acima: as epidemias do crack e da violência entre os jovens. Dentre outras coisas, a epidemia de violência, a continuar no nível em que está, afetará dentro de poucas décadas a estrutura da população, em relação à sua distribuição etária e fertilidade. Recordemos que esta epidemia em particular, está desequilibrando a proporção de jovens do sexo masculino (>90%) em certos setores da sociedade com um perfil econômico e cultural típicos, que talvez tenham influência significativa neste estado de coisas, assim como o clima e a imunidade da população tem como determinativos das epidemais infecciosas.

Vamos prosseguir neste assunto em breve.