sexta-feira, 8 de maio de 2015

O viajante oculto


É sabido desde as primeiras epidemias de Marburg e Ebola que sobreviventes da infecção desses vírus não os eliminam totalmente (Câmara, 1995). Descobriu-se que alguns sobreviventes transmitiam o vírus durante as relações sexuais através do esperma (infecção subclínica dos testículos). Outros exibiam transaminases moderadamente elevadas devido à uma hepatite crônica e alguns padeciam de uma uveíte devido à presença do vírus interior de um dos globos oculares. Agora foi noticiado que o médico americano que se recuperou recentemente de febre Ebola, adquirida quando trabalhava voluntariamente em Serra Leoa, no ano passado, passou a manifestar uma dolorosa uveíte. Em seu relato, Ian Crozier nos mostra uma faceta pouco conhecida da patogênese dos vírus Ebola/Marburg. Talvez o mesmo possa ocorrer entre os primatas que servem de elo na cadeia entre o reservatório silvestre e o ser humano (Câmara, 1998).
 
Esses fatos me chamam a atenção para os meandros da evolução, que sempre encontra soluções inesperadas e criativas. Vimos neste biênio de 2014-2015 que uma extensa epidemia de Ebola varreu boa parte da África ocidental, com risco de exportação para terras distantes. Isto não aconteceu, e as razões expliquei em um post anterior (“A febre Ebola pode virar pandemia?”, 23/09/14). Fatores estocásticos contribuíram para isso. Entretanto, a ameaça de disseminação do vírus para o mundo nos é agora mostrada claramente segundo o fenômeno a que nos referimos no início deste post. Sobreviventes da febre Ebola, ao não eliminarem o vírus totalmente de seus organismos, podem levá-lo para onde for, originando surtos locais que, se propícias as condições (péssimas condições higiênico-sociais e promíscuas), podem se transformar em epidemias. Claro que mais uma vez fatores estocásticos contribuirão para isso.

Vírus com alto grau de virulência podem mantê-la encontrando vias alternativas de transmissão, como é o caso dos filovírus antrópicos. O HIV, p. ex., evoluiu de linhagens cuja janela de incubação permanece aberta por um longo tempo, o suficiente para ser transmitido sexualmente antes de debilitar e matar seu hospedeiro humano; a raiva canina decorre de linhagens que afetam o rinencéfalo, levando o animal a salivar intensamente e a atacar e morder robotizado pela alteração cerebral produzida pelo vírus e, assim, transmitindo-o eficazmente pela saliva. Para os que estudam evolução, estes são bons exemplos de “evolução de grupo”. E para os que não estão familiarizados com o evolucionismo, é uma falácia a tese – infelizmente ainda divulgada entre nossos estudantes - de que “o parasita evolui para conviver com seu hospedeiro”. Este terrível equívoco foi divulgado pelo célebre Hans Zinsser em 1933, numa época em que a genética evolutiva e coevolução ainda não tinham sido abordada. Vamos nos atualizar, pessoal.

E la nave va.


Câmara FP. O Vírus Ébola e sua Infecção. A Folha Médica, 1995; 111: 47-51.

Câmara FP. The Epidemiology of Ebola Virus: Facts and Hypothesis. Braz. J. Infect. Dis., 1998; 2: 264-267.