Desde épocas remotas a humanidade convive amigavelmente com coronavírus que causam, junto com os rinovírus, os resfriados que costumam incidir nas estações frias. Entretanto, em 2002 algo incomum aconteceu. Pessoas na China começaram a adoecer gravemente com um pneumonia causada por um agente desconhecido. A doença logo se espalhou para Hong Kong, Singapura e clusters da mesma começaram a aparecer em outros 27 países. A nova doença destruía os pulmões e estava matando cerca de 11% dos doentes, em média (nos idosos acima dos 60 anos essa taxa subia para cerca de 50%), e foi chamada de SARS (sigla inglesa para “Síndrome Respiratória Aguda Grave”). Logo se descobriu que era um coronavírus, o primeiro coronavírus pneumogênico conhecido. Descobriu-se também que esse vírus teria saltado de um hospedeiro animal vendido nos mercados de Guandong, a civeta (Paguma larvata), gato-das-palmeiras ou gato almiscarado, uma iguaria gourmet muito apreciada na China. Seguindo a pista chegou-se ao reservatório natural do vírus, o morcego-ferradura (Rhinopulus sp.), um pequeno mamífero voador frugívoro que vive nas cavernas silvestres da região.
O vírus SARS-CoV-1 não
infecta humanos com facilidade; ele não consegue infectar eficientemente o
trato respiratório superior, mas consegue infectar os alvéolos pulmonares
devido à maior abundância dos receptores específicos para ele nos pneumócitos. Somente
as pessoas que estavam gravemente enfermas transmitia a Sars, e por isso ela
chegou a ser considerada uma infecção hospitalar, porque a maioria dos doentes
eram hospitalizados e transmitiam a doença aí. Esses fatos possibilitaram o controle
da doença.
Em oito meses, após
contabilizar mais de oito mil vítimas diagnosticadas, o vírus desapareceu quase
que subitamente.
Em 2012 os virologistas
e epidemiologistas foram sobressaltados com a emergência de outro coronavírus
selvagem na Arabia Saudita, aparentemente transmitido por camelos e dromedários
que viviam em estábulos nas proximidades de mercados. Novamente identificou-se
o morcego como o hospedeiro natural desse novo coronavírus . A doença se chamou
MERS (sigla inglesa para “Síndrome Respiratória do Oriente Médio”) e era muito
letal, 34% a 38% dos doentes morriam de uma Sars extremamente grave. A infecção
era de difícil propagação e só ocorria em pequenos clusters.
Clusters de casos
apareceram em toda península Arábica e foram exportados para outros países
através de viajantes. Ao contrário da Sars, o vírus Mers não desapareceu; casos
esporádicos são eventualmente relatados até o momento. Imagina-se que este
vírus está evoluindo, e se conseguir se adaptar ao ser humano, tornando-se
transmissível, teríamos uma pandemia que poderia eliminar um terço da
humanidade (outro terço morreria de fome e o tecido social se romperia).
Como não houve
epidemias de Mers, a mídia não deu valor ao novo coronavírus, pois não se via
ameaça. Somente os especialistas sabiam da Mers.
Em dezembro de 2019
noticiou-se, entre muitas notas na imprensa internacional, uma infecção
respiratória que estaria preocupando a população de Wuhan, uma moderna e
populosa cidade na China, na província de Hubei. Em janeiro a situação já se
configurava como uma calamidade local, e preocupava a OMS que preparou a
população mundial para uma possível epidemia. Em março a doença já estava na
Europa e Oriente Médio, e partir de então tornou-se a maior pandemia que a
humanidade conheceria em toda sua história. Em menos de um ano todos os
recantos do planeta haviam sido invadidos por outro novo coronavírus , que veio
a ser denominado SARS-CoV-2, assim chamado porque a doença era uma forma
altamente infecciosa de Sars. A OMS chamou essa nova forma de Sars de Covid-19
(sigla inglesa para “Doença por Coronavírus de 2019”) para evitar um pânico que
seria maior do que estava começando a acontecer.
Ao contrário dos vírus SARS-CoV-1
e Mers, o vírus SARS-CoV-2 ao emergir em Wuhan e iniciar uma rápida propagação,
mostrou com isso sua adaptação ao hospedeiro humano. Em dois anos, ele sofreu
mutações que aumentaram ainda mais sua infecciosidade e transmissibilidade sem,
contudo, aumentar sua letalidade.
Dos cerca de 500
coronavírus isolados em morcegos, o vírus SARS-CoV-2 possui uma pequena
informação adicional ao seu genoma, de apenas 12 nucleotídeos (cerca de 24
bits), que não existe em nenhum dos coronavírus até agora conhecidos. Esta
sequência, traduzida em quatro aminoácidos adicionais, torna o vírus SARS-CoV-2
altamente infeccioso para a espécie humana..
A alta afinidade do SARS-CoV-2
pelo receptores ECA-2 das células do trato respiratório faz com que ele
rapidamente colonize as células do trato respiratório superior: a nasofaringe,
e daí prossegue para os pulmões. Nos mais debilitados e nos idosos, a reação
inflamatória à infecção pulmonar pelo vírus é grave e pode ser fatal em cerca
de 20% dos casos. Nos mais saudáveis e mais jovens, a mortalidade cai bastante.
A gravidade e a mortalidade da doença incidem sobre os idosos, mas
principalmente em portadores de duas ou mais comorbidades ativas como diabetes,
obesidade, cardiopatias, nefropatias. Esses são mais de 90% dos que morrem, e
assim é fragilidade da saúde e o comprometimento desta por outras morbidades
que agrava a Covid-19.
O fato de o Sars- 2
infectar fácil e abundantemente o trato respiratório superior faz com que ele
seja facilmente transmissível numa simples conversa. Os perdigotos servem de
veículo para a infecção e assim o vírus atinge a mucosa nasal das pessoas. As
aglomerações favorecem bastante o contágio, e são nesses ajuntamentos que os
surtos se iniciam e se propagam comunitariamente a partir daí. O indivíduo já
transmite o vírus pouco antes de adoecer, e não são raros os doentes
assintomáticos ou oligossintomáticos que se mantém socialmente ativos
contribuindo para a disseminação comunitária do vírus. O contágio da Covid-19 é, portanto, muito
facilitado e eficiente, ao contrário da Sars. A pandemia era inevitável.
No geral, a mortalidade pela Covid-19 é inferior a 2%, embora suas taxas de infecção tenham variado bastante durante a pandemia, tendo chegado em certos momentos a 5%. Como o vírus infectou grande parte das populações, uma mortalidade de 2% equivale a um grande número de óbitos, por exemplo, em um bilhão de infectados isto equivale a vinte milhões de mortes.
Características
dos vírus SARS-CoV-1, SARS-CoV-2 e Mers
PROPRIEDADES |
|||
Doença |
SARS
|
MERS |
COVID-19 |
Gênero
|
Betacoronavirus |
Betacoronavirus |
Betacoronavirus |
Reservatório
natural |
Morcego-ferradura |
Morcego |
Morcego-ferradura |
Receptor
celular |
ECA-2* |
DPP-4** |
ECA-2* |
Transmissão
|
Perdigotos
|
Perdigotos
|
Perdigotos
|
R0 |
2,2
a 3,6 |
R0
< 1 |
2,2
a 3,6 |
Assintomáticos
|
Não
|
Não
|
Sim |
Transmissão
antes da doença |
Não
|
Não
|
Sim
|
Período
de incubação*** |
2-7
dias |
|
2-14
dias |
Letalidade****
|
9-11% |
34-38% |
1-3% |
*Enzima de Conversão da
Angiotensina 2; ** Dipepdil Peptidase 4; ***Periodo entre a exposição ao
patógeno e a manifestação da doença; **** Taxa de mortalidade específica de uma
doença.