sábado, 12 de março de 2022

COVID-19 - EMERGÊNCIA GLOBAL

Desde épocas remotas a humanidade convive amigavelmente com coronavírus que causam, junto com os rinovírus, os resfriados que costumam incidir nas estações frias. Entretanto, em 2002 algo incomum aconteceu. Pessoas na China começaram a adoecer gravemente com um pneumonia causada por um agente desconhecido. A doença logo se espalhou para Hong Kong, Singapura e clusters da mesma começaram a aparecer em outros 27 países. A nova doença destruía os pulmões e estava matando cerca de 11% dos doentes, em média (nos idosos acima dos 60 anos essa taxa subia para cerca de 50%), e foi chamada de SARS (sigla inglesa para “Síndrome Respiratória Aguda Grave”). Logo se descobriu que era um coronavírus, o primeiro coronavírus pneumogênico conhecido. Descobriu-se também que esse vírus teria saltado de um hospedeiro animal vendido nos mercados de Guandong, a civeta (Paguma larvata), gato-das-palmeiras ou gato almiscarado, uma iguaria gourmet muito apreciada na China. Seguindo a pista chegou-se ao reservatório natural do vírus, o morcego-ferradura (Rhinopulus sp.), um pequeno mamífero voador frugívoro que vive nas cavernas silvestres da região.

O vírus SARS-CoV-1 não infecta humanos com facilidade; ele não consegue infectar eficientemente o trato respiratório superior, mas consegue infectar os alvéolos pulmonares devido à maior abundância dos receptores específicos para ele nos pneumócitos. Somente as pessoas que estavam gravemente enfermas transmitia a Sars, e por isso ela chegou a ser considerada uma infecção hospitalar, porque a maioria dos doentes eram hospitalizados e transmitiam a doença aí. Esses fatos possibilitaram o controle da doença.

Em oito meses, após contabilizar mais de oito mil vítimas diagnosticadas, o vírus desapareceu quase que subitamente.

Em 2012 os virologistas e epidemiologistas foram sobressaltados com a emergência de outro coronavírus selvagem na Arabia Saudita, aparentemente transmitido por camelos e dromedários que viviam em estábulos nas proximidades de mercados. Novamente identificou-se o morcego como o hospedeiro natural desse novo coronavírus . A doença se chamou MERS (sigla inglesa para “Síndrome Respiratória do Oriente Médio”) e era muito letal, 34% a 38% dos doentes morriam de uma Sars extremamente grave. A infecção era de difícil propagação e só ocorria em pequenos clusters.

Clusters de casos apareceram em toda península Arábica e foram exportados para outros países através de viajantes. Ao contrário da Sars, o vírus Mers não desapareceu; casos esporádicos são eventualmente relatados até o momento. Imagina-se que este vírus está evoluindo, e se conseguir se adaptar ao ser humano, tornando-se transmissível, teríamos uma pandemia que poderia eliminar um terço da humanidade (outro terço morreria de fome e o tecido social se romperia).

Como não houve epidemias de Mers, a mídia não deu valor ao novo coronavírus, pois não se via ameaça. Somente os especialistas sabiam da Mers.

Em dezembro de 2019 noticiou-se, entre muitas notas na imprensa internacional, uma infecção respiratória que estaria preocupando a população de Wuhan, uma moderna e populosa cidade na China, na província de Hubei. Em janeiro a situação já se configurava como uma calamidade local, e preocupava a OMS que preparou a população mundial para uma possível epidemia. Em março a doença já estava na Europa e Oriente Médio, e partir de então tornou-se a maior pandemia que a humanidade conheceria em toda sua história. Em menos de um ano todos os recantos do planeta haviam sido invadidos por outro novo coronavírus , que veio a ser denominado SARS-CoV-2, assim chamado porque a doença era uma forma altamente infecciosa de Sars. A OMS chamou essa nova forma de Sars de Covid-19 (sigla inglesa para “Doença por Coronavírus de 2019”) para evitar um pânico que seria maior do que estava começando a acontecer.

Ao contrário dos vírus SARS-CoV-1 e Mers, o vírus SARS-CoV-2 ao emergir em Wuhan e iniciar uma rápida propagação, mostrou com isso sua adaptação ao hospedeiro humano. Em dois anos, ele sofreu mutações que aumentaram ainda mais sua infecciosidade e transmissibilidade sem, contudo, aumentar sua letalidade.

Dos cerca de 500 coronavírus isolados em morcegos, o vírus SARS-CoV-2 possui uma pequena informação adicional ao seu genoma, de apenas 12 nucleotídeos (cerca de 24 bits), que não existe em nenhum dos coronavírus até agora conhecidos. Esta sequência, traduzida em quatro aminoácidos adicionais, torna o vírus SARS-CoV-2 altamente infeccioso para a espécie humana..

A alta afinidade do SARS-CoV-2 pelo receptores ECA-2 das células do trato respiratório faz com que ele rapidamente colonize as células do trato respiratório superior: a nasofaringe, e daí prossegue para os pulmões. Nos mais debilitados e nos idosos, a reação inflamatória à infecção pulmonar pelo vírus é grave e pode ser fatal em cerca de 20% dos casos. Nos mais saudáveis e mais jovens, a mortalidade cai bastante. A gravidade e a mortalidade da doença incidem sobre os idosos, mas principalmente em portadores de duas ou mais comorbidades ativas como diabetes, obesidade, cardiopatias, nefropatias. Esses são mais de 90% dos que morrem, e assim é fragilidade da saúde e o comprometimento desta por outras morbidades que agrava a Covid-19.

O fato de o Sars- 2 infectar fácil e abundantemente o trato respiratório superior faz com que ele seja facilmente transmissível numa simples conversa. Os perdigotos servem de veículo para a infecção e assim o vírus atinge a mucosa nasal das pessoas. As aglomerações favorecem bastante o contágio, e são nesses ajuntamentos que os surtos se iniciam e se propagam comunitariamente a partir daí. O indivíduo já transmite o vírus pouco antes de adoecer, e não são raros os doentes assintomáticos ou oligossintomáticos que se mantém socialmente ativos contribuindo para a disseminação comunitária do vírus.  O contágio da Covid-19 é, portanto, muito facilitado e eficiente, ao contrário da Sars. A pandemia era inevitável.

No geral, a mortalidade pela Covid-19 é inferior a 2%, embora suas taxas de infecção tenham variado bastante durante a pandemia, tendo chegado em certos momentos a 5%. Como o vírus infectou grande parte das populações, uma mortalidade de 2% equivale a um grande número de óbitos, por exemplo, em um bilhão de infectados isto equivale a vinte milhões de mortes.

Características dos vírus SARS-CoV-1, SARS-CoV-2 e Mers

PROPRIEDADES

Doença

SARS

MERS

COVID-19

Gênero

Betacoronavirus

Betacoronavirus

Betacoronavirus

Reservatório natural

Morcego-ferradura

Morcego

Morcego-ferradura

Receptor celular

ECA-2*

DPP-4**

ECA-2*

Transmissão

Perdigotos

Perdigotos

Perdigotos

R0

2,2 a 3,6

R0 < 1

2,2 a 3,6

Assintomáticos

Não

Não

Sim

Transmissão antes da doença

Não

Não

Sim

Período de incubação***

2-7 dias

 

2-14 dias

Letalidade****

9-11%

34-38%

1-3%

*Enzima de Conversão da Angiotensina 2; ** Dipepdil Peptidase 4; ***Periodo entre a exposição ao patógeno e a manifestação da doença; **** Taxa de mortalidade específica de uma doença.

O Livro "O Enigma da Peste Negra"


 



sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Novo surto de peste em Madagascar

Madagascar vem sendo periodicamente atacada pela Yersinia pestis em surtos locais. Um novo surto foi agora anunciado. A forma pneumônica da doença vem sendo sistematicamente observada entre os casos bubônicos. As condições para uma epidemia estão presentes, talvez o determinante seja alguma alteração climática favorável (v. em meu livro discussão sobre o assunto).

quinta-feira, 10 de março de 2016

Lançamento do livro "O Enigma da Peste Negra". Convite

Meu livro "O Enigma da Peste Negra" terá seu lançamento na Livraria da Travessa, no Shopping Leblon. O convite abaixo é para todos, será um prazer tê-los na noite de autógrafos.


“Esta obra é um exaustivo estudo sobre a epidemiologia, história, biologia, ecologia, virulência e evolução da mais terrível e letal arma biológica que a Natureza criou para destruir a civilização humana. O autor desenvolve a teoria de que a Peste Negra emergiu no Egito na 18ª dinastia e se espalhou no mundo antigo encerrando a Idade do Bronze, tendo evoluído na África Central e Oriental e daí se espalhado pelo mundo através das rotas comerciais. Ele contesta a tese atualmente aceita de que a Peste evoluiu e se disseminou a partir da Ásia Central; mostra, com base em numerosas provas, que a tese de que a Pandemia Medieval não foi devido à Yersinia pestis é uma falácia; e desenvolve a teoria de que as grandes pandemias de peste levaram à globalização de uma rede ecológica com potencial de disseminação do bacilo pestífero em qualquer parte do mundo. O estudo inclui ainda uma revisão completa sobre alterações climáticas e as pandemias de peste, um capítulo sobre evolução da virulência e uma conclusão sobre globalização e pandemias”.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Zika x microcefalia: a controvérsia continua

Será apenas no Brasil que o vírus zika está causando microcefalia (síndrome da zika congênita)? Até agora isso é somente uma declaração oficial do Ministério da Saúde, as evidências científicas/dados plausíveis não foram ainda expostos. E enquanto isso, na Colômbia, com mais de 7.600 grávidas infectadas, não há relatos de associação com microcefalia nos fetos, idem em El Salvador. Na Venezuela também não há relato de tal associação. Também na epidemia em Cabo Verde, na África, não se observou a associação. Em Sergipe, casos de microcefalia começaram a explodir a partir de agosto de 2015, juntamente com a epidemia de zika no Nordeste, porém, esses casos não foram reagentes para o vírus zika, o que está sendo considerado um "enigma". Ora, isto nos mostra que microcefalia x zika não é um paradigma, e outras associações devem ser procuradas antes de se falar em causalidade.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Zika: alguns esclarecimentos

O vírus zika virou celebridade internacional depois que o governo brasileiro decretou ser ele o "agente causal" de microcefalia congênita. É a primeira vez que uma causalidade epidemiológica é afirmada por decreto, deixando os virologistas e epidemiologistas perplexos. Entretanto, os importantíssimos dados epidemiológicos e demográficos que precisamos para investigar mais a fundo a declaração do Ministério da Saúde aparentemente desapareceram. Onde estão os dados que sugerem uma forte associação entre vírus zika e microcefalia? Notícias nos chegam que nas epidemias de zika na Colômbia, El Salvador, Cabo Verde e na própria Polinésia não se observou microcefalia em bebês de grávidas infectadas. A conferir.

Outra "novidade" é a de certos pesquisadores compararem o vírus zika ao da encefalite japonesa (ou venezuelana, ou de St. Louis, ou West Nile etc.). Ora, não há evidências de encefalite por zika. É preciso não confundir as coisas. Vejamos:

1) Vírus agentes de encefalites são aqueles que provocam encefalite ou meningoencefalite em uma parcela dos infectados, deixando uma parte desta com sequelas neurológicas (paralisia, cegueira, etc.);

2) O síndrome de Guillain-Barré, que parece estar associado à infecção por zika (veja meu post "É o vírus zika neurotrópico?"), não é encefalite, mas uma inflamação na medula. Não se pode classificá-lo como um "vírus causador de encefalite" ou compará-lo com encefalite japonesa ou qualquer outra.


domingo, 21 de fevereiro de 2016

Febre amarela, uma ameaça potencial

Uma epidemia de febre amarela, a mais letal das arboviroses conhecidas, reapareceu após 30 anos de silêncio epidemiológico em Angola e matou 51 pessoas entre 241 casos suspeitos (21,2%). Em Luanda, capital do país, subúrbio de Viana, notificou-se 29 mortes entre 92 casos (31,5%).
Considerando que a febre amarela urbana é transmitida pelo nosso velho conhecido Aedes aegypti e A.  albopictus e que o trânsito de pessoas de Angola para o Brasil e vice-versa é muito intenso, temos a probabilidade de importação desse vírus entre nós. Temos tudo aqui que favorecerá a entrada desse vírus: o vetor, a suscetibilidade da população, o tráfego intenso e renovado entre os dois países.
Se fizermos uma projeção teórica para 1 milhão de habitantes suscetíveis ao vírus, teríamos, com essa mortalidade, uma epidemia de febre amarela com 210 mil vítimas fatais. Isto significa colapso social, econômico e político, e a demanda por assistência médica intensiva estaria além da demanda de todos os hospitais juntos (talvez 2 mil leitos disponíveis em toda cidade para cuidados intensivos, considerando uma população total de 6 milhões). 
A febre amarela tem vacina, e seria o caso de vacinar a população exposta no caso de detecção de casos entre nós (haverá quantidade disponível?). Vigilância epidemiológica é agora necessária diante desse surto em um país com o qual mantemos intensa relação. Já tivemos a entrada da dengue e mais recentemente dos vírus africanos zika e chikungunya. Tudo é possível num mundo globalizado. O que atrasa e prejudica a nossa saúde pública são os cortes de verbas motivados, antes de tudo, por ideologias politicas, conjuntamente com o afastamento dos técnicos e cientistas dos postos de decisões do Ministério da Saúde, colocando em seu lugar políticos aliados sem nenhuma competência técnico científica. Não adianta pensar que Deus é brasileiro, ele já mostrou que não é.